Perseguição às religiões de matriz africana, como candomblé e umbanda, também se dá pela forte presença de mulheres e minorias.

“Exu (…) exerce forte domínio sobre as mulheres e as moças”, dizia uma coluna de opinião no jornal “O Estado de São Paulo” em 1973. Escrito no período da Ditadura Militar (1964-1985), o artigo demonizava as religiões de matriz africana e demonstrava preocupação que as mulheres abandonassem o lar em troca da vida nos terreiros. Quase cinco décadas depois, o machismo e o racismo seguem presentes na vida das que escolhem fazer parte das religiões afro-brasileiras, mas elas resistem.

Não é comum vê-las em cargos de liderança em outras religiões, como na Igreja Católica, com padres e papas homens. Já nos terreiros, as mulheres quase sempre são maioria, ocupando os postos mais altos. Quem frequenta os barracões, como também são chamados os terreiros, percebe isso.

Seja como mulheres de santo, senhoras do ilê, sacerdotisas ou herdeiras do axé, elas conquistaram um protagonismo que não ficou restrito aos terreiros. “Axé Muntu” é uma expressão criada pela intelectual Lélia Gonzalez — uma mistura das línguas Iorubá (axé: poder, energia) com o dialeto Kimbundo (muntu: gente). A socióloga e ativista usou muito de sua vivência como mulher do candomblé na produção intelectual que fez sobre a vida e posição das mulheres negras na sociedade brasileira.

Nesta reportagem, trazemos as falas de Mãe Du, Nailah, Kenya e Renata, que, assim como Lélia, mostram que a influência dos povos de terreiros pode ser encontrada hoje no espaço acadêmico, na militância, na política, na culinária e em vários outros campos da sociedade.

Num país marcado por profundas desigualdades sócio-raciais como o Brasil, os terreiros e as mulheres à frente deles — as macumbeiras, como elas mesmas se denominam — desempenham um papel social muito além da religião. Elas realizam uma “feitiçaria” ao conciliar a tradição de diferentes povos, resistir às opressões e ajudar a proporcionar um espaço de acolhimento a quem sempre foi excluído.

Perseguição à cultura e às mulheres.

A perseguição aos terreiros e barracões, que já dura mais de 500 anos, e as campanhas de difamação na imprensa geraram uma falta de conhecimento generalizada. “A umbanda, com seus sucedâneos e religiões assemelhadas, é entre nós um subproduto da ignorância associada à politicalha. Seu terreno de eleição já foi o quilombo e o mocambo. Modernamente é a favela e o escritório eleitoral” — dizia mais um trecho da coluna do jornal paulista, publicada logo após uma festa em comemoração ao Dia de Oxóssi.

Noticiários racistas como esse não eram, e não são raros. Resquícios de uma sociedade que até 1832 obrigava todos a se converterem à religião oficial do Estado. Na época, era a cristã. Isso fez com que outras expressões religiosas fossem criminalizadas, sofrendo com opressão policial e apreensão de objetos sagrados, que até hoje nunca foram devolvidos.

A cientista política e praticante do candomblé, Nailah Neves, Ìyàwó ty ???un, afirma que essa perseguição também era resultado do fato de as mulheres serem maioria e liderarem as casas de axé.

“Terreiros, quilombos e escolas de samba, que eram espaços de resistência e de valorização da cultura negra matriarcal, eram um grande risco para o projeto eugenista e patriarcal do Estado brasileiro.”

Mesmo passados 34 anos da Constituição Federal que, em seu artigo 5º passou a garantir a liberdade de crença e proteçao aos locais de cultos religiosos diversos, a discriminação não teve fim. Um estudo da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa, do Rio de Janeiro, apontou que, em 2021, 91% dos ataques que ocorreram no estado eram contra as mesmas religiões, as de tradição africana.

Ensinamentos da pombagira.

Embora as investidas contra os afrorreligiosos não tenham sido poucas, os terreiros e as mulheres continuam passando de geração em geração os preceitos e fundamentos do povo de axé. Renata Pallottine, 36, é bisneta de Dona Maria, Mãe de Santo, de uma casa de umbanda no interior de São Paulo, e cresceu aprendendo os valores civilizatórios desta comunidade.

Advogada pelos direitos das mulheres e atuante no combate ao racismo religioso, Renata atualmente é responsável pela área jurídica do coletivo Terreiro Resiste, movimento de defesa das comunidades tradicionais. Hoje, como uma das filhas de santo mais velhas de um terreiro na capital paulista, ela conta que foi essa vivência que contribuiu para o seu engajamento na luta:

“Quem nasce umbandista já aprende com a Pombagira que a desigualdade de gênero mata, aniquila e silencia, e que mulheres, sobretudo as racializadas, devem ocupar lugar de poder e decisão dentro das nossas comunidades.”

A Pombagira é uma das entidades cultuadas nessas religiões, que representa as encruzilhadas e é conhecida por simbolizar uma figura feminina ligada ao prazer e à liberdade sexual. Renata explica que a figura da pombagira em muitos lugares é temida exatamente por romper com a lógica patriarcal: “Mulher que poeticamente nos ensina a autonomia dos corpos femininos”.

 

Folha da Terra Jornal

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