A questão da saúde complementar é um dos principais temas da atualidade, considerando-se a importância do atendimento à população, a relevância econômica do setor e outros aspectos. E neste campo, há um tema fundamental: a discussão sobre a taxatividade do rol de procedimentos e eventos em Saúde Suplementar da ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar).
*André Massioreto Duarte
Mesmo antigo, esse debate parece estar longe de totalmente resolvido. Em junho de 2022, a segunda seção do STJ (Superior Tribunal de Justiça) estabeleceu que este rol é, de forma geral, taxativo. O julgamento foi naturalmente interpretado como uma vitória das operadoras de planos de saúde.
No entanto, este resultado causou não só comoção popular, como reação legislativa imediata: no dia seguinte foi protocolado, na Câmara dos Deputados, projeto que, pouquíssimos meses depois, tornou-se a Lei 14.454/2022. Com essa legislação, foi esvaziada a posição do STJ e o rol voltou a ser apenas “exemplificativo”.
O texto desta lei determina que as operadoras cubram procedimentos que não estão listados no rol desde que fique evidenciada comprovação científica da eficácia e, ou exista recomendação pela Conitec (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde) ou, ao menos, de um órgão de avaliação de renome internacional.
Ainda que o STF (Supremo Tribunal Federal), ao ser provocado a se manifestar acerca desta lei, tenha mantido seu teor sem retoques, parece inegável que a solução que saiu do legislativo trouxe conseqüências nebulosas e ainda não dirimidas completamente.
É preciso definir, entre outros aspectos, se a Lei 14.454/2022 tem papel de retroagir e deve ser aplicada a casos antigos. Assim como se estabelecer qual é o efetivo conceito “caso antigo”.
Não é por outra razão que o Ministro Raul Araújo, de maneira sensível, propôs, na 2ª Seção do STJ, Incidente de Assunção de Competência sobre o tema, o que teria o sentido de buscar pacificar a discussão. No entanto, o Colegiado da corte, de forma não unânime, inicialmente rejeitou a proposta.
A razão central da rejeição naquele momento, como destacou a Ministra Nancy Andrighi, está na ausência de suficiente amadurecimento das teses relacionadas ao influxo da Lei 14.454/2022 nas decisões da Segunda Seção, o que, supõe-se, deve ser resolvido com o tempo.
A própria egrégia Ministra Nancy chancelou a relevância da questão e até sugeriu, caso fosse admitida a instauração do incidente, a seguinte proposta de identificação daquela a ser submetida a julgamento, a saber: “hipóteses de aplicação das teses fixadas no julgamento do EREsp 1.886.929/SP e do EREsp 1.889.704/SP pela Segunda Seção e de incidência da Lei 14.454/2022 nos processos em que se discute a obrigação de cobertura, pela operadora de plano de saúde e de procedimentos e eventos no listados no rol da ANS”.
Bem, o fato é que, enquanto não definitivamente enfrentada a questão no STJ, persiste um quadro de lacuna em um tema de alta relevância social e econômica. Tanto que o Ministro Raul Araújo, com precisão, indica que a instâncias ordinárias podem ficar em “(…) posição complicada: elas têm um precedente vinculante que aponta para a taxatividade do rol e uma lei posterior que diz que o mesmo é exemplificativo. Um deles precisará ser ignorado, e isso não acontecerá de maneira uniforme”.
Neste cenário, já se vê divergência na jurisprudência. E há entendimentos de que a Lei que comentamos aqui não retroage em função da sua natureza material, sendo aplicável somente aos casos em que a negativa ocorrer a partir da entrada em vigor, ou seja, 22/9/2022[1].
Em resumo, parece bastante necessário que o STJ compatibilize e harmonize entendimento anterior à Lei 14.454/2022 o quanto antes, notadamente porque existe, de fato, um plexo de situações jurídicas que podem não se resolver com a simples aplicação da nova Lei, como sugerido pelo Ministro Raul Araújo.
O enfrentamento atende não só a necessidade de prestígio à estabilidade, integridade e coerência da jurisprudência (uma das diretrizes mais relevantes do atual Código de Processo Civil), mas, ainda, à necessidade de prioritária escolta aos relevantíssimos bens jurídicos subjacentes à discussão. Estabilidade, integridade e coerência, vale lembrar, são aspectos fundamentais para o andamento na sociedade de um tema tão relevante que é a prestação de serviços em saúde.
* André Massioreto Duarte, advogado especialista em Direito Processual Civil pela FGV, é sócio do escritório Gaido & Massioreto Sociedade de Advogados – MagLaw. Guilherme Augusto Santos Oliveira, advogado especialista em Direito Processual Civil pela FGV, integra o escritório MagLaw.