“Ninguém entende quando a gente fala que tem um incômodo com algum barulho”, conta a estudante de jornalismo Anna Clara Carvalho, de 21 anos. Há cerca de um ano e meio, conversando com sua psicóloga, a jovem descobriu a misofonia como a causa da intolerância a alguns sons repetitivos, problema que a acompanha desde sempre.
“Normalmente fazem piadas ou dizem que é implicância”, diz a estudante que não é a única a relatar essa condição. Estima-se que, todos os anos, cerca de 150 mil pessoas recebem o mesmo diagnóstico no Brasil. Em todo o mundo, 15% dos adultos sofrem com a misofonia, de acordo com o Misophonia Institute.
E a dor dos misofônicos vai além da própria aversão a alguns sons; sofrem também com a incompreensão e o desconhecimento das outras pessoas, o que, segundo Anna Clara, dificulta ainda mais. A jovem diz que, muitas vezes, precisou retirar-se de um ambiente pela dificuldade de tolerar os sons; mas esclarece que “não se incomoda com a pessoa e, sim, com o barulho que essa pessoa está fazendo”
O tratamento para a misofonia a estudante procura na psicoterapia, através do processo de dessensibilização, já que também possui hipersensibilidade auditiva (que provoca maior nitidez de alguns sons). “É fundamental procurar ajuda porque foge do nosso controle”, diz Anna Clara.
O que é misofonia? Descrita e reconhecida cientificamente perto dos anos 2000, é conhecida como Síndrome da Sensibilidade Seletiva a Sons. Mas, conta Tanit Ganz Sanchez, professora de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina (FM) da USP, a misofonia é um problema antigo.
Segundo a professora, é comum que os misofônicos sintam intenso incômodo ao ouvir sons de volume baixo e repetitivos, como a mastigação, o engolir, o mascar chiclete, o tossir ou pigarrear, o estalar os lábios, o assoviar e o tomar sopa. A respiração ruidosa ou ofegante, o assoar o nariz e o som de ronco também são exemplos. Tanit inclui ainda o som da digitação, de clicar a caneta, de usar talheres, de tamborilar os dedos, de mexer as chaves, de abrir papel de bala e de pipoca, arrastar chinelo e o barulho de salto alto no chão. Em alguns casos, sons feitos por animais também podem ser incômodos, como latido; miados e piados.
O quadro mais comum da misofonia é a forte reação emocional negativa, incontrolável e desproporcional às situações de exposição aos sons, gerando sentimentos como a raiva, o ódio, a irritabilidade e, às vezes, o nojo. Taquicardia, palpitação, sudorese e mal-estar também podem ser associados à aversão inicial causada pela misofonia, informa a especialista
Segundo Tanit, nem sempre a misofonia surge sozinha, podendo ser acompanhada de algum grau de hiperacusia (desconforto relacionado ao volume dos sons), de fonofobia (medo irracional de exposição a sons) e, ainda, do “zumbido”, que é um som ouvido em momentos de silêncio. As pesquisas científicas sobre o tema, conta a professora, têm relacionado misofonia à ansiedade, zumbido, transtorno obsessivo-compulsivo (TOC) e hiperacusia.
Sem causas definidas até o momento, há indícios de que seja um problema hereditário que pode aparecer já na infância ou na adolescência. Já o diagnóstico, em geral, é feito em entrevista médica detalhada (anamnese). A esse protocolo, a especialista une avaliação audiométrica e exame de Limiar de Desconforto a Sons (LDL), que é uma maneira de “diferenciar se a pessoa tem a misofonia pura ou associada a hiperacusia”, além de exames de sangue “para ver se existem possíveis explicações para aquele quadro”.
Como se trata a misofonia? A ciência e a prática clínica ainda precisam avançar bastante para determinar estratégias definitivas para o tratamento da misofonia. Mas, segundo Tanit, algumas técnicas já existentes podem ser úteis, ainda que não sejam eficazes para todos os pacientes. A estimulação sonora, com sons baixos, leves e estáveis podem mudar a “hiperativação do sistema límbico”, apresentada por misofônicos. Prescritos por médicos, alguns medicamentos podem ajudar, como os utilizados para zumbido e hiperacusia e para algumas doenças mentais. Outras opções de tratamento são a terapia cognitiva comportamental, o neurofeedback (técnica utilizada para treinar o cérebro) e a meditação.
Em relação à cura da misofonia, Tanit diz que não há casos descritos na literatura médica. Mas, adianta que, no ano passado, durante o Novembro Laranja (Campanha Nacional de Alerta ao Zumbido, promovida pelo Instituto Ganz Sanchez), conheceu três pessoas que se consideram curadas. “A cura da misofonia é possível, embora a gente ainda não tenha substrato científico suficiente para entender o porquê e em quem ela acontece”, afirma a especialista.